65 - Idadismo na Medicina
Já falei anteriormente em Idadismo em termos gerais, nomeadamente em Idadismo I e Idadismo II e voltarei certamente a este assunto pela sua tremenda importância e por ser o único tipo de discriminação plenamente aceite pela sociedade atual, tão “vidrinho” quando se trata de todas as outras, reais ou, mais frequentemente, imaginárias.
Mas neste post irei apenas referir-me à sua vertente na área da prestação de cuidados médicos. É que, sobretudo inconscientemente, é uma das mais viciadas, digamos, contra pessoas de uma certa idade. E não me refiro apenas a quem presta cuidados médicos a todos os níveis, o problema abrange também, infelizmente, familiares, cuidadores e até as próprias pessoas já não muito novas.
Como expliquei anteriormente, há a ideia generalizada que envelhecer implica, automaticamente, doenças de todos os tipos e diminuição das capacidades mentais. Pode ter sido verdade há uns séculos, ou, até, há umas décadas, mas, como expliquei em vários posts, nomeadamente em Mitos do envelhecimento da população, é-o cada vez menos.
Recordo, também, que a faixa etária acima dos 65 anos tem um peso cada vez maior na composição dos países Ocidentais mas, à parte o usual “choradinho” sobre os “velhinhos, coitadinhos” e a desgraça que é este envelhecimento geral da população, na prática nada se faz para nos adaptarmos a esta nova realidade.
Por exemplo, os ensaios de novos fármacos raríssimas vezes englobam pessoas acima dos 50, a menos que seja algo muito específico como medicamentos para a doença de Alzheimer. A presunção é que uma pessoa de 70 e uma de 30 reagem do mesmo modo.
Há também pouquíssimos estudos sobre o modo como certos elementos básicos, digamos, a tensão arterial e o colesterol, por exemplo, evoluem com a idade. Sim, há tabelas que abrangem, supostamente, todas as faixas etárias, só que não se baseiam em estudos recentes sobre uma amostra suficientemente grande e saudável de pessoas acima de uma certa idade. O que é estranho, se pensarmos que nunca foi tão fácil fazer um estudo desses dados uma vez que nunca houve tanta gente disponível para essa análise.
Mas há pior. Estudos feitos noutros países detetaram que as consultas médicas de idosos são menos frequentes e duram menos tempo do que as feitas a outras camadas etárias mais baixas. Segundo parece não é esse o caso em Portugal, onde os idosos têm até mais consultas. Mas isso só acontece porque, dado o estado do nosso SNS, muitos só consultam um médico quando estão mesmo mal – eu, por exemplo, em 30 e tal anos só pedi 3 consultas – e o hábito de exames periódicos para ver se está tudo bem restringe-se, quase sempre, a quem os pode pagar (ou tem ADSE...).
E o idadismo não se restringe apenas a consultas. Há inúmeras doenças que são encaradas de modo diferente consoante a idade do paciente. Cancros, por exemplo. E não sou eu que o digo, isso foi denunciado por médicos do Instituto Português de Oncologia e do Instituto Europeu de Oncologia num artigo de O Público de julho de 2010. Ou o caso dos transplantes, em que há uma idade limite que nada tem a ver com o estado geral de saúde da pessoa em questão, só com a sua idade.
É como se grassasse a ideia de que a partir de uma certa idade é inútil o país gastar dinheiro com a saúde da pessoa... sim, não é uma atitude consciente, mas, infelizmente, existe. Não que concorde em forçar tratamentos com baixíssimas possibilidades de resultarem em pessoas de idade muito avançada e que só lhes irão dar um sofrimento acrescido, mas acho que em vez de olharmos apenas para o fator etário devíamos, isso sim, ter em conta o estado geral da pessoa, caso a caso.
Voltando às consultas, estudos têm demonstrado que os médicos prestam menos atenção às queixas dos doentes mais idosos, atribuindo-as à idade. O pior é que muitos dos que vão às consultas partilham da mesma ideia errónea de que envelhecer é sinónimo de doença e nem sempre falam do que sentem e dos seus sintomas porque “é a vida”.
A situação começa a mudar, mas as Faculdades de Medicina e de Enfermagem também têm grandes culpas no cartório. Um estudo da OMS de 2002 mostrava que os cinco principais cursos de medicina em Portugal não incluíam uma unidade separada de Geriatria, o mesmo se passando com os cursos de enfermagem. Ou seja, estuda-se pediatria mas, para o outro extremo da vida, nada, nadinha!
E se o idoso é internado, para simples tratamento ou algo mais grave, é visto como qualquer outro paciente, talvez um pouco mais “chato” de aturar. Ou seja, os nossos hospitais não se adaptaram à presença de cada vez mais idosos entre os doentes que recebem. E não me refiro apenas à vertente física, nomeadamente o risco acrescido de infeções e o facto de uma hospitalização agravar a perda de autonomia física da pessoa pelo imobilismo a que está sujeita. É que psicologicamente também pode agravar, e de que maneira, a tendência para a depressão, a ideia de “é o fim, não escapo desta”.
Referi, também, familiares e cuidadores. É que estes têm uma certa tendência para “tomar conta” de uma consulta, ignorar o que o idoso diz e esconder-lhe certos diagnósticos “para não o preocupar”, tudo sob a ideia de que um idoso não passa de uma criancinha com muitos anos, incapaz de decidir por si.
Também aqui, cada caso é um caso. Sim, há idosos com grandes dificuldades cognitivas que precisam que alguém “fale por eles”. E também há aqueles que sofrem de hipocondria cada vez mais aguda à medida que os anos passam, não sendo, pois, desejável saberem tudo o que se passa com eles. Mas para muitos, se não mesmo a maioria, quanto menos lhes dizem maior é a sua preocupação, sabem como é, “se não me querem dizer, é porque estou à morte...”
Pois bem, acho que já é altura de se olhar para esta faixa etária com outros olhos, nomeadamente em estudos médicos e farmacêuticos, e de combater com todas as forças o idadismo generalizado numa área importantíssima para todos nós.
Como nota final, gostei muito do livro Discriminação na Terceira Idade de Sibila Marques, mais um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos. É de 2011 mas continua, infelizmente, atualizado.
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